Carnaval, entre captura e esperanças

Por que, cada vez mais, temas como herança africana, cultura indígena e luta LGBTI desfilam na passarela? Quais os desafios ao tratar questões complexas e históricas? Como, apesar dos limites e da mercantilização, a festa visibiliza atores sociais e ajuda a construir engajamentos políticos?

Foto: Gabriel Monteiro/Riotur
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O Carnaval, uma das maiores manifestações culturais no Brasil, é celebrado de Norte ao Sul do país por meio de diferentes expressões artísticas e culturais, envolvendo desde os desfiles das escolas de samba no Rio de Janeiro e em São Paulo até os blocos de rua em cidades como Salvador, Recife e Belo Horizonte. Trata-se de uma forma de celebração que reflete a diversidade do povo brasileiro, reunindo influências africanas, indígenas e europeias e mantendo vivas tradições como o samba, o frevo e o maracatu, além de promover a cultura popular e visibilidade a grupos historicamente marginalizados.

Não obstante a grandiosidade das manifestações carnavalescas pelo país, o carnaval carioca tem nos convocado a refletir como nos últimos anos, o palco da apoteose da Marquês de Sapucaí tem sido, sobretudo, um espaço de valorização das culturas africanas e indígenas, da defesa da diversidade e da denúncia às desigualdades sociais. Como expressão artística e política, seus sambas-enredos, cada vez mais ricos e contundentes, estão para além do entretenimento, servindo como forma de resistência e conscientização, principalmente, sobre a pauta étnico-racial e social, transformando-se em símbolo de alerta das iniquidades sociais brasileiras mais reluzentes.

Produzindo uma variada articulação entre a periferia e o centro, numa cidade sitiada por milícias, narcotraficantes, empresários, empresas e organizações sociais, vimos surgir uma intrincada relação entre cultura e capital, na qual seus produtos e eventos são firmados a partir de uma narrativa que exala “harmonia”.

Embora tenha raízes populares e ainda seja a expressão disso, o carnaval tem se tornado cada vez mais comercial, refletindo o sentido empresarial e mercadológico da lucratividade. Os abadás e camarotes exclusivos em Salvador, o alto custo para desfilar e os ingressos caros nos Sambódromos do Rio de Janeiro e São Paulo, bem como a privatização de espaços públicos em algumas cidades, restringem o acesso da população de baixa renda a espaços marginais.

Tomando por princípio de que a margem é sempre uma fronteira, nesses gloriosos dias de carnaval, os “barões retintos” que nos lembrava Chico Buarque, desfilam charmosos com seu bailado pela Marquês de Sapucaí, lembrando as ruas do Rio colonial. É nesse contexto dos camarotes, onde a elite branca brasileira se deleita no “fantástico mundo de Alice”, que as portas e janelas se abrem para aplaudir as histórias e a aqueles e aquelas que são invisibilizados/as nos demais 363 dias do ano.

As contradições se evidenciam quando o espetáculo insiste em tematizar os limites dessa fronteira estruturalmente bem construída. Se por um lado a indústria do turismo e do entretenimento busca potencializar a cultura enquanto mercadoria, os da outra margem da fronteira buscam evidenciar as identidades marcadas pela ausência de uma efetiva política social de integração do povo marginalizado.

Os processos contemporâneos de acumulação econômica na relação com as localidades e as formas de apropriação cultural também sinalizam uma completa ausência do que Robert Castel denominava de trocas reguladas. Não há cooperação nessas relações, a espoliação se dá pelo controle exclusivo sobre a produção cultural que a indústria do carnaval propicia ao tornar comercializável as dores produzidas pela espetacularização da vida do povo negro, indígena e do público LGBTQIAPN+, para citar alguns.

É assim que o capital simbólico coletivo se revela tão somente em sua singularidade temporal dos dias de momo. Para o Rio de Janeiro, a política do empreendedorismo urbano tem um potencial elevado por extrair das diferenças estéticas, das histórias de espoliação e suas variações culturais os lucros sem, contudo, tocar nas origens dessas variações. Passados os dias gloriosos, tudo está de volta a sua “normalidade”.

É a relação entre cultura e capital que evidencia as bordas dessas fronteiras. A cultura e a estética negras, os valores afetivos e a existência social passam a compor um ingrediente rico e diversificado na elaboração dos temas carnavalescos. Para estes, a oportunidade de expor as ausências de um pacto social, cujas bases os incluam, se evidencia nas letras dos sambas-enredo, e no empenho comunitário de como essas histórias serão contadas.

Esses enredos refletem a diversidade cultural e histórica do Brasil, abordando temas que vão desde figuras religiosas e mitológicas, até homenagens a personalidades influentes na música e na cultura afro-brasileira como Zumbi dos Palmares, Luiz Gama e Marielle Franco. Muitas escolas de samba têm utilizado suas plataformas para trazer à tona temas como a herança africana e indígena, a luta contra o racismo, a discussão sobre gênero e sexualidade e a valorização da diversidade religiosa. Esses enredos refletem a história e as experiências da população afro-ameríndia, promovendo um entendimento mais profundo sobre o processo de formação da sociedade brasileira, a exemplo da história e os desafios da comunidade da Rocinha, situada na cidade carioca.

Todavia, é mister salientar que debates tem se evidenciado nos últimos anos sobre a forma como esses temas são abordados, a partir de variadas vertentes analíticas. Alguns argumentam que as escolas de samba podem promover a superficialidade de questões complexas e históricas, ao transformá-las em espetáculos que não acrescentam materialidade prática ao comprometimento com a luta antirracista. Além disso, há preocupações sobre como esses enredos são recebidos pelo público e se, de fato, agenciam diálogo e reflexão ou apenas entretenimento, na medida que se dilui em momento de recreação da realeza.

O debate também tem envolvido a baixa presença, representatividade e inclusão de vozes negras na produção desses enredos, bem como a necessidade de um maior apoio e visibilidade para artistas, compositores e carnavalescos negros e negras dentro das escolas de samba, assim como as figuras de destaque, a exemplo das rainhas de baterias, geralmente, mulheres brancas e loiras, de grande visibilidade nacional. Assim, enquanto muitos celebram a inclusão desses temas como uma forma de resistência e conscientização, setores conservadores da sociedade se incomodam com a abordagem política, revelando que o Carnaval, além de festa, também é um espaço político de disputa de narrativas.

No ano de 2019, por exemplo, a Salgueiro celebrou o orixá Xangô como símbolo de justiça e narrou o mito da criação do mundo por meio da tradição Iorubá. A Mangueira, em 2020, trouxe à tona a hipocrisia religiosa e as violências sofridas pelas ditas minorias no Brasil. Com o samba-enredo “A Verdade Vos Fará Livre”, narrou Jesus Cristo representado por várias faces: mulher, jovem negro, homoxessual e periférico, desafiando as narrativas tradicionais da branquitude, masculinidade e filosofia cristã. Já em 2023, a Beija-Flor de Nilópolis apresentou o samba-enredo “Empretecer o Pensamento é Ouvir a Voz da Beija-Flor”, destacando a luta contra a marginalização da cultura negra. Por sua vez, a Unidos da Tijuca, em 2024, contou com o samba-enredo “Os Caminhos do Sol”, mergulhando na história das tradições e mitos indígenas.

Este ano de 2025 não podia ser diferente dos demais. As escolas de samba privilegiaram e demarcaram seu posicionamento político com sambas-enredos que contam as histórias míticas das distintas religiões, sobretudo as de matrizes africanas, da valorização da cultura negra e indígena, a exaltação de artistas negros consagrados e o impacto do racismo estrutural brasileiro na vida da população negra.

Entre as escolas do Grupo Especial, cinco se destacaram por trazerem o tema da religiosidade. A Viradouro, por exemplo, com o samba-enredo “Malunguinho: O Mensageiro de Três Mundos”, revelou a história de Malunguinho, uma falange espiritual afro-ameríndia presente nos terreiros de Catimbó, Toré e Umbanda, inspirada na figura de João Batista, último líder do Quilombo do Catucá, situado em Pernambuco. A Imperatriz Leopoldinense cantou “Ómi Tútu ao Olufon – Água Fresca para o Senhor de Ifón”, que narra um itã da mitologia Iorubá, o qual se refere ao momento da visita do orixá Oxalá ao Reino de Oyó para encontrar o orixá Xangô. Já a Salgueiro explorou a relação humana em torno da busca por proteção espiritual, com o samba-enredo “Salgueiro de Corpo Fechado”. Por sua vez, a Unidos da Tijuca com “Logun-Edé – Santo Menino que Velho Respeita”, destacou o orixá Logunedé. Segundo o mito, um jovem guerreiro respeitado pelos mais velhos por promover o conhecimento sobre sua cultura. E, por fim, a Unidos de Padre Miguel que homenageou Iá Nassô, uma das fundadoras do Candomblé da Barroquinha, que deu origem à Casa Branca do Engenho Velho, o mais antigo templo afrobrasileiro em funcionamento, com o samba-enredo “Egbé Iyá Nassô”.

Mas, cabe destaque também ao desfile da Mangueira com o samba-enredo “À Flor da Terra – No Rio da Negritude Entre Dores e Paixões” – que retratou a historicidade da população preta na região da Pequena África, na Zona Central do Rio de Janeiro. A Paraíso do Tuiuti, com o tema “Quem Tem Medo de Xica Manicongo?”, evidenciou a história de Francisco Manicongo, considerada a primeira travesti do Brasil, que foi escravizada no século XVI e condenada pela Santa Inquisição por sua identificação de gênero. E “Cantar Será Buscar o Caminho que Vai Dar no Sol”, o samba-enredo da Portela que homenageou ao cantor e compositor Milton Nascimento, destacando a sua contribuição para a música popular brasileira.

É inegável que o monopólio da produção do carnaval estabelece um controle de longo alcance sobre a produção e a criatividade destes que buscam a relevância da justiça social através de expressivas composições dos temas carnavalescos. As representações expressas nas agremiações das escolas de samba demarcam o entorno das comunidades as quais fazem parte da história de resistência e luta pela sobrevivência dos povos marginalizados e vulnerabilizados.

A arte deve representar o engajamento político, gerando o debate sobre a responsabilidade dessas produções, os limites das críticas e a recepção do público aos temas abordados. É preciso reconhecer a sua importância enquanto instrumento da construção das narrativas históricas invisibilizadas, rompendo com os laços da história única contada, como explicita a Chimamanda Ngozi Adichie. A história do filme dirigido por Walter Salles, premiado em 2025 ao Oscar de melhor filme internacional, Ainda Estou Aqui é um bom exemplo disso. Este longa-metragem, adaptado da obra literária autobiográfica, lançada em 2015, de autoria de Marcelo Rubens Paiva, que foi adaptado para o cinema em 2024, narra a história, por meio das experiências da família e do próprio autor, principalmente de sua mãe Dona Eunice Paiva no período da Ditadura Militar no Brasil (1964-1985). O desfecho da história e as violências sofridas por esta família, retratam a história de tantas outras famílias brasileiras que sofreram a repressão durante este período histórico.

Assim como o filme Ainda Estou Aqui, as escolas de samba criam contrapontos importantes para dar visibilidade à realidade social vivenciada pelos principais protagonistas dessas histórias. Sendo assim, a centralidade na tematização das histórias africanas e seus desdobramentos no país a partir da diáspora forçada do povo africano nos sambas-enredos é também uma maneira da população negra gritar que ainda permanecemos aqui sobrevivendo, resistindo e lutando.

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